Entrei na loja e uma sineta logo tocou. Também, com tanta tralha acumulada neste antiquario, seria impossível ver se alguém abriu a porta. Não sei como você consegue me arrastar pra esses lugares. O cheiro de mofo, naftalina e vidas passadas impreguina o ambiente. Revejo mentalmente a nossa conversa de dois dias atrás: em que ponto eu concordei com esse local de encontro? Aqui sequer tem onde sentar para te esperar chegar. Porque eu sei, terei que esperar você chegar. Atrasar é da sua natureza. Conforme vou me movimentando pela loja, vou afundando num cemitério de lembranças alheias. E cadê você? Minha garganta seca com o ar velho daqui, que deve ter vindo junto com os primeiros móveis. Logo hoje que vou lhe contar um dos bons, e de literatura nacional…
Não precisa enganar ninguém. Homens, seres humanos, não são pequenos flocos de neve: especiais, únicos, belos por dentro e por fora. Nada disso. Somos o que dá pra fazer hoje, e pro amanhã dá-se um jeito. Não somos sonhos realizados e nem sorrisos na praia. E quero ver quem prove o contrário.
Dividindo seu tempo entre a obssessão pelo ralo e o fascínio pela bunda da garçonete do bar onde almoça, “o moço que parece o rapaz do comercial da Bombril” segue a vida delirando para garantir sanidade em meio a essa rotina.
Tudo piora quando ele compra um olho de vidro, e uma série de frequentadores que ele julgava controlar acabam se rebelando, o fazendo naufragar em ilusão e loucura, sem saber diferenciar realidade de fantasia, o cheiro do ralo sufoca cada vez mais.