[Resenha] Black Mirror – O assustador futuro da tecnologia

Black Mirror é uma série inglesa de… de quê? Ficção científica? Drama? Humor negro? É bem difícil categorizar. Criada e escrita por Charlie Brooker, originalmente era exibida pelo Channel 4, mas foi comprada pela Netflix. Possui duas temporadas com 3 episódios cada e um episódio especial de Natal, exibidos em 2011, 2013 e 2014. Sua terceira temporada está prevista para estrear esse ano, com 6 episódios.

Cada episódio traz uma história e um elenco diferente, mas todas ambientadas num futuro onde a tecnologia é completamente integrada com a sociedade. Falar sobre Black Mirror é falar sobre como a sociedade se tornou escrava da tecnologia. Cada episódio aborda um aspecto diferente desse vício, e a forma como todas as interações, reações e atitudes se adaptaram à era digital, levada ao extremo na série mas ainda perfeitamente crível.

S01E01 – The National Anthem (O Hino Nacional)

Começamos com o Primeiro Ministro Inglês, Michael Callow, acordando no meio da madrugada com uma ligação dizendo que a Princesa Susannah havia sido sequestrada e que um vídeo fora divulgado com as exigências feitas pelo sequestrador. O problema é que o vídeo havia sido postado na internet, e a exigência para que Susannah fosse solta não era nem um pouco convencional.

Enquanto o relógio corre e a hora limite estabelecida se aproxima, vemos em paralelo o Primeiro Ministro sendo pressionado por seu partido e pela opinião pública, e o povo (a princípio da Inglaterra, mas depois do mundo inteiro) enfeitiçado em frente à TV, querendo saber o grotesco desfecho da história. Ao se ver sem opções, o Primeiro Ministro se rende à exigência do sequestrador, botando em risco o futuro de sua carreira e de sua família. Enquanto isso o público assiste tudo, em um misto de horror e fascínio, alheio ao que acontece em seu redor.

A crítica presente nesse episódio é bem forte, falando sobre o fascínio humano com o sofrimento alheio. Vemos cenas de uma equipe de um hospital que passou o dia inteiro sem trabalhar acompanhando o caso, assim como pessoas em bares bebendo e se divertindo enquanto esperavam para assistir o Primeiro Ministro realizando um ato grotesco. Ao mesmo tempo que as emissoras advertiam às pessoas que não assistissem a transmissão, seus repórteres usam de todos os meios possíveis para descobrir novidades sobre o caso, inclusive arriscando suas vidas. No começo a opinião pública era contrária à execução da exigência do sequestrador, mas com o desenrolar dos fatos mudam totalmente de opinião, chegando a ameaçar o Primeiro Ministro caso ele não fizesse o necessário para salvar a vida da Princesa.

O final do episódio me deixou muito mal, pois mostra como a opinião e a pressão pública pode destruir a vida de uma pessoa. Quando seu próprio partido disse que não ofereceria mais apoio e nem segurança, eu senti o desespero de Michael Callow que, além de ser Primeiro Ministro da Inglaterra, também era um ser humano. Depois de se sacrificar para salvar a princesa, sua existência se resumiu a uma farsa sustentada apenas por motivos políticos, apenas para agradar os eleitores. PESADO.

Elenco: Rory Kinnear (Penny Dreadful), Tom Goodman-Hill (Humans), Lydia Wilson (Star Trek: Sem Fronteiras), Lindsay Duncan (Questão de Tempo)

S01E02 – Fifteen Million Merits (Quinze Milhões de Méritos)

Vivemos dentro de caixas individuais, com telas gigantes que mostram nossos reality shows e programas favoritos. Acordamos, nos arrumamos e vamos para nossos trabalhos maçantes, onde realizamos atividades repetitivas e sem fundamento em troca de dinheiro para gastarmos com alimentação e diversão. Eu poderia estar descrevendo a vida de milhões de pessoas, mas na verdade é o panorama do episódio.

Acompanhamos a vida de Bing, preso em sua rotina diária e tentando descobrir algo novo que o tire desse torpor. Todos os dias ele acorda e vai para seu trabalho que consiste em pedalar incessantemente em troca de “méritos”, que são uma espécie de sistema de pontos que servem para comprar comida, realizar atividades básicas, assistir programas, comprar roupas e objetos para seus avatares virtuais e assistir pornografia (que é algo importante e corriqueiro para eles).

Um dia chega à sua unidade a linda e jovem Abi, e isso desperta imediatamente o seu interesse. Após criar coragem para conversar com ela, Bing descobre que ela é uma ótima cantora e se oferece a ajudá-la a participar do Show de Talentos mais famoso da atualidade, Hot Shot. Depois de muito insistir Abi decide aceitar os 15 milhões de méritos necessários para comprar o bilhete de entrada, e os dois partem para a competição.

Até então eu tava achando bem maçante, mas depois que Abi falha em agradar os jurados a história sofre uma reviravolta: é oferecida à ela a oportunidade de sair de seu cubículo, nunca mais pedalar e se tornar a estrela do programa erótico Wraith Babes. Entre viver uma vida miserável e sair de sua tortura Abi escolhe a segunda opção, o que deixa Bing extremamente revoltado com todo o sistema, fazendo de sua missão pessoal conseguir juntar mais 15mil méritos para voltar ao Hot Shot e dizer aos jurados e ao público tudo aquilo que estava entalado dentro dele, todas as injustiças e humilhações que presenciou. Mas será que ele vai ser capaz de resistir a tudo de bom que a camada mais poderosa pode oferecer?

Apesar de demorar pra engrenar, o episódio é uma metáfora muito interessante da nossa realidade. Vivemos presos na mesma rotina e reclamamos o tempo inteiro, mas raramente fazemos nenhum tipo de esforço para mudar isso. As poucas pessoas que se importam o suficiente para falar ou fazer algo são aplaudidas por nós, mas logo depois são silenciadas e a importância de seu discurso e ideal minimizada. Reclamamos de tudo mas nos contentamos com pouco. E a ideia de que cada um tem seu preço, evidenciada pela série, é tão real que chega a ser assustadora.

Elenco: Daniel Kaluuya (Kick Ass 2), Jessica Brown Findlay (Downton Abbey), Rupert Everett (O Casamento do Meu Melhor Amigo)

S01E03 – The Entire History of You (Toda a sua História)

Esse episódio foi um dos que eu achei mais interessantes, por tratar de temas delicados. Reza a lenda que o Robert Downey Jr. comprou os direitos da história para produzir a versão cinematográfica. Nos resta esperar pra ver.

Conhecemos Liam e Ffion, um jovem casal, com uma filha de pouco mais de um ano de idade. Ao chegar em uma reunião de amigos de sua esposa, Liam começa a suspeitar que um dos convidados, Jonas, tenha um interesse por Ffion maior do que apenas amizade. Ele começa a analisar o comportamento dos dois e interrogar sua esposa, até se tornar completamente paranoico.

Até aí é apenas mais uma história de ciúme doentio, infelizmente comum em muitos relacionamentos. A diferença é que nessa realidade as pessoas possuem dispositivos eletrônicos chamados “Grain”, que são uma espécie de HD inserido atrás da orelha e conectado ao cérebro, que permitem que todos os momentos sejam gravados em tempo real. Com ele é possível rebobinar, dar zoom, acelerar, fazer leitura labial, e várias outras funções, todas usando os próprios olhos para ver ou projetar em telas essas lembranças. E é aí que mora o perigo.

A ideia é muito interessante. Imagina poder rever e compartilhar momentos divertidos e emocionantes da sua vida? Só que quanto mais Liam chega perto da verdade, mais o seu ciúme e paranoia o levam à exaustão e ao desespero. Apesar de não fazer uma crítica tão forte à sociedade e a tecnologia, ele mostra os perigos/benefícios (depende do seu ponto de vista) do nosso querido “stalk” em excesso. Liam fica tão obcecado em descobrir a verdade e em mostrar pra Ffion que estava certo, que acaba se destruindo também no processo. E no final, fica o questionamento: Será que a ignorância não teria sido melhor?

Elenco: Toby Kebbel (Warcraft), Jodie Whittaker (Broadchurch), Tom Cullen (Downton Abbey)

S02E01 – Be Right Back (Volto Já)

Esse episódio foi uma das coisas mais comoventes que eu já assisti em muito tempo. Martha e Ash são um casal apaixonado, que acabou de se mudar para uma casa no campo. Ash dirige de volta para a cidade e sua falta de notícias desespera a esposa, que logo descobre que ele faleceu em um acidente (desculpa pelo spoiler de leve). Em processo de luto, sofrendo com a ausência de seu marido, uma amiga informa Martha sobre um novo aplicativo que emula a pessoa falecida, reunindo todo o rastro online deixado por ela.

A princípio Martha se mostra irredutível, não aceita a existência de algo assim pois um aplicativo nunca poderia substituir um ser humano. Mas quando faz contato pela primeira vez e escuta de novo a voz de Ash, o que deveria ser algo para ajudá-la a superar e seguir em frente acaba se tornando uma obsessão. As coisas só pioram quando “Ash” conta para Martha sobre uma nova fase do aplicativo, ainda em fase experimental.

Vemos uma crítica direta ao uso excessivo de smartphones e ao constante compartilhamento de nossa vida online. Colocamos tudo que fazemos nas redes sociais: pra onde vamos, com quem vamos, nossas amizades, nossos empregos, nossas rotinas, o que comemos, do que gostamos. Ash estava o tempo inteiro olhando na tela de seu celular, inclusive é bem provável que tenha sido isso que resultou em sua morte.

“Be Right Back” é brutal. A dor da perda é devastadora e Martha luta tanto para ter Ash de volta que não consegue mais pensar direito, não vê as consequências de seus atos, se esquece de viver no mundo real para se relacionar com um software. Hayley Atwell está incrível no papel, e me peguei chorando com ela em algumas cenas.

Elenco: Hayley Atwell (Capitão América), Domhnall Gleeson (Ex-Machina)

S02E02 – White Bear (Urso Branco)

Cara, de boa, O QUE É ESSE EPISÓDIO? As coisas começam a acontecer e seu queixo vai caindo até chegar no chão! Nunca vi um plot twist tão absurdo quanto esse, fiquei um bom tempo achando que seria mais um clichê de filme de terror, tentando entender o motivo de todo o hype em torno desse episódio até que BOOM!

Victoria acorda em um apartamento, com muita dor de cabeça, bandagens no pulso e pílulas espalhadas pelo chão. Ela não se lembra quem é, onde está e nem o que aconteceu com ela. Na televisão uma espécie de símbolo pisca constantemente, e do lado de fora as pessoas parecem estar em alguma espécie de encantamento, observando o mundo por trás das telas de seus celulares.

Após alguns minutos um homem salta de um carro e começa a perseguí-la com uma arma. Enquanto foge, ela encontra uma mulher que aparenta estar agindo normalmente e com sua ajuda consegue escapar desse homem que está tentando matá-la. A jovem explica a Victoria que o símbolo que ela viu na televisão é o responsável pela forma como as pessoas estão agindo. A sociedade não possui mais regras morais e foi dividida em dois grupos: As pessoas que estão “enfeitiçadas” pelo símbolo, filmando tudo que veem sem tentar ajudar ou intervir; e as pessoas que não foram afetadas pelo símbolo, mas que se tornaram espécies de “caçadores”, roubando e matando enquanto as outras pessoas filmam. A jovem não se encaixa em nenhum grupo, mas sim está tentando chegar ao “White Bear”, o transmissor responsável pela emissão desse sinal. Depois de escaparem por pouco as duas conseguem chegar em seu destino, mas é aí que tudo começa a ficar estranho e ninguém é o que parece ser.

Depois do choque que é o fim do episódio, bate aquela sensação ruim de familiaridade. Hoje é muito comum vermos vídeos de assassinatos e acidentes sendo compartilhados no whatsapp e facebook, vermos notícias e vídeos de pessoas sendo linchadas por seus crimes, pessoas essas que muitas das vezes acabam sendo provadas inocentes. Esse sentimento de “justiça com as próprias mãos” tem se tornado cada vez maior e corriqueiro, a ponto de se tornar uma espécie de segunda lei, pra quando a lei verdadeira falha. Esse episódio mostra isso de uma forma assustadora, onde as pessoas vão ao extremo pra satisfazer o seu senso de justiça, por achar que a justiça convencional não foi o suficiente.

Elenco: Lenora Crichlow (Being Human), Michael Smiley (Luther), Tuppence Middleton (Sense8)

S02E03 – The Waldo Moment (O Momento Waldo)

Waldo é um urso azul, animado por computador utilizando os movimentos manuais e faciais de Jamie, que está cansado de se esconder atrás de um personagem. Waldo é adorado na internet e fala o que pensa, geralmente ofendendo seus entrevistados durante o processo. Após tirar sarro de um concorrente ao parlamento, os produtores do canal resolvem tirá-lo de sua curta esquete e criar um programa para ele, levando-o em ações promocionais pelas ruas.

Suas implicâncias com políticos acabam fazendo com que as pessoas lancem uma campanha na internet para que ele se torne também um candidato ao parlamento, e Waldo é convidado para um debate em uma universidade. Durante o debate, Jamie é ofendido por um dos candidatos, e então resolve ser extremamente sincero, xingando e dizendo o quanto todos os políticos só se importam com seus próprios problemas. É claro que o vídeo se torna viral e as pessoas começam a pensar seriamente em votar em Waldo para líder do Parlamento.

O problema é que Jamie nunca quis isso, nunca quis se envolver com política, nunca quis figurar como uma voz revolucionária e nem ficar preso ao personagem para sempre. Porém por trás de um personagem é mais fácil dizer o que pensa e expor as falhas dos oponentes, sem sofrer consequências, e isso chama a atenção de potências internacionais que começam a elaborar planos de ataque usando Waldo. Jamie resolve se rebelar contra tudo isso, mas acaba descobrindo que sua existência é irrelevante para a continuidade da “carreira” de Waldo.

É impossível assistir isso e não se lembrar da época da eleição do palhaço Tiririca, com o slogan de “Pior do que tá, não fica”. As pessoas gostam de personagens, gostam de humor pastelão e por algum motivo não acham problemático eleger caricaturas para cargos importantes. Pensar que um desenho animado poderia ser eleito para o Parlamento Inglês não continua tão grotesco e surreal quando você pensa em todos os personagens que os políticos criam pra chamar a atenção. E a gente aplaude, dá risada e cria memes.

Elenco: Daniel Rigby (Flyboys), Chloe Pirrie (Misfits), Jason Flemyng (X-Men: First Class)

Especial de Natal – White Christmas (Natal Branco)

Acompanhamos Matt e Potter em um restaurante na noite de natal, tentando se conhecer melhor e conversando sobre suas vidas e as histórias que aconteceram com eles. Não sabemos muito bem onde eles estão e há quanto tempo se conhecem.

Matt começa a contar sobre seu “trabalho” de ajudante de homens tímidos, dando dicas de como abordar mulheres através de um programa instalado nos olhos da pessoa. Tudo que acontecia com o contratante do serviço era transmitido ao vivo para os outros assinantes, e em uma destas noites algo dá terrivelmente errado e Matt é obrigado a deixar sua vida e família para trás.

Depois disso Matt começa a trabalhar em uma indústria que cria e instala uma espécie de programa que lê todas as características mentais da pessoa, servindo como uma espécie de escravo tecnológico, realizando todas as vontades e repassando todos os aspectos do dia. Esse “pedaço” da pessoa é inserido em um compartimento chamado “Cookie”, que reúne todas essas informações e memórias.

Logo após é a vez de Potter contar sobre sua vida e seu passado com sua namorada que, ao descobrir estar gravida, subitamente o abandonou e bloqueou (na realidade em que eles vivem, as pessoas possuem a habilidade de bloquear alguém, temporária ou permanentemente, de forma que ela se torna apenas um borrão cinza). Após passar anos tentando entender o que aconteceu, uma tragédia faz com que o bloqueio desapareça, e a verdade é difícil demais para que Potter consiga aceitar. Como sempre acontece na série, nada é o que parece ser, e o bloqueio se revela uma cruel ferramenta de exclusão social.

Apesar de ter um tom crítico um pouco mais fraco que os outros, não acho esse episódio ruim. A reviravolta na trama é bem interessante, assim como o conceito do bloqueio como “pena branda” para crimes e como uma forma de fugir de suas responsabilidades e confrontos pessoais.

Elenco: Jon Hamm (Mad Man), Rafe Spall (Prometheus), Oona Chaplin (Game of Thrones), Natalia Tena (Game of Thrones)

Black Mirror é uma série fascinante que deixa em evidencia o lado podre do ser humano e a forma como a tecnologia ajuda a aflorá-lo. Seu nome se dá devido ao fato de que as telas dos aparelhos eletrônicos quando desligadas se tornam um espelho negro. E é nesse espelho distorcido que Charlie Brooker nos mostra essa não tão distante realidade. Série excelente que rende uma ótima reflexão sobre nossos hábitos online!

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