Senhorita Christina de Mircea Eliade é uma daquelas obras da literatura que, mesmo alcançando alto nível dentro de sua proposta, se mantém desconhecida do grande público e até mesmo daquele mais especifico.
Não é segredo para nenhum freak que os vampiros da cultura pop são, em geral, representações e corruptelas do strigoi, um morto-vivo do folclore Romeno que volta do além em corpo ou alma penada para atormentar os vivos e sugar deles a vida através do sangue ou da simples assombração. Sendo assim, muito me espanta que Senhorita Christina, um livro do sub-gênero de vampiros escrito por um romeno e fiel ao folclore original, passe desapercebido de nós.
Pessoalmente, já havia ouvido falar desse romance muito tempo atrás. Na faculdade, cheguei a ler alguns textos de Mircea Eliade. Ele é um eminente intelectual romeno, normalmente conhecido por suas obras sobre mitologia e história das religiões, mas foi através de alguns verbetes de O Livro dos Vampiros – a enciclopédia dos mortos vivos, que eu passei a conhecer de título o romance vampiresco deste autor. Como sou um fã inveterado de vampiros, procurei pelo romance no mercado brasileiro e descobri a inexistência de uma tradução e acabei me esquecendo dele displicentemente. A falta de atenção só foi resolvida agora em 2016 quando eu topei com o título em português no Estante Virtual por uma bagatela. O livro foi traduzido e lançado pela editora Tordesilhas em 2011 em um volume de grande estilo, com capa dura, folhas de alta gramatura, um pósfacio excelente e ilustrações que vão fazer surtar os apaixonados pela arte lúgubre e gótica.
A sinopse de Senhorita Christina carrega a simplicidade típica de qualquer história folclórica. Nela o pintor Igor e o arqueólogo Nazarie, ambos homens da cidade grande, reúnem-se como hóspedes em uma grande casa de campo habitada por três mulheres de uma decadente linhagem aristocrática, são elas: a Sra. Moscu e suas duas filhas, Sanda e Simina. A fazenda das três é assombrada pela memória de Christina, a devassa irmã mais velha da Sra. Moscu, que foi assassinada por um amante durante um levante camponês trinta anos antes de a história começar. Em meio a desaparecimentos de animais domésticos, pesadelos inexplicáveis e um mal misterioso que dissipa a vida de Sanda pouco a pouco, Igor e Nazarie percebem que Christina é mais que uma memória, ela é um strigoi, uma assombração real que ronda a casa onde estão hospedados.
A história de Senhorita Christina é definitivamente uma peça do gótico contemporâneo que evoca o espírito de autores como Henry James e Edgar Allan Poe, mas são perceptíveis alguns sabores do leste europeu cujas referências me escapam por óbvia falta de mais material e estudo. Embora o livro tenha sido originalmente publicado em 1936, quem gosta dos toques literários do fim do século XIX vai ter um prato cheio nessa obra de Eliade.
São muitos os pontos que chamam a atenção, o primeiro deles é obviamente a originalidade. Existe uma pureza muito grande nesse livro, raramente vista em uma obra de horror. Parte disso se deve ao profundo conhecimento que autor possuía sobre o folclore do próprio pais, mas a outra parte existe pelo fato de que na década de 30 os vampiros estavam apenas começando a sair das sombras de Drácula, Carmilla e Varney, as únicas referências possíveis só podiam advir desses clássicos e Eliade soube administrar muito bem, qualquer um vai ser capaz de perceber que a doença que aflige a personagem Sanda é uma óbvia alusão ao mesmo mal que deitou-se sobre Lucy Westenra em Drácula de Bram Stoker, isso ajudou a trama a cortar papo furado, entregando logo de cara que Christina é uma vampira e se faz presente.
Mesmo assim, Christina é uma sanguessuga diferente do que estamos acostumados a conhecer.Sempre que ela aparece a narrativa adquire tons febris e oníricos, somando isso às informações que os protagonistas possuem sobre ela, fica difícil entender se ela se manifesta como uma alma penada ou em carne e osso como os vampiros que conhecemos. A conclusão mais sensata é de que ela se encontra entre os dois estados sobrenaturais e isso torna a trama ainda mais sublime, pois a experiência de terror que sentimos vem através do medo e confusão que a presença sobrenatural detona em Nazarie e, sobretudo, em Igor, alvo da avassaladora paixão da vampira.
Em outras palavras, alguns dos capítulos de Elíade roubam completamente os referenciais de realidade do leitor e dos personagens, e, por outro lado, nos coloca em uma atmosfera que parece ir muito alem do sonho e do delírio, é uma sensação muito próxima aquelas evocadas pelas “descrições” dos horrores que habitam o universo de Lovecraft que escrevia na mesma época em que Eliade.
Quase todas as sequências do livro são amargas, chocantes ou assustadoras, é particularmente terrível a presença de Simina, uma criança que possui uma maturidade horripilante e que se mostra capaz de subjugar homens fortes e saudáveis. O trecho em que ela e Igor se encontram no porão vai fazer os mais puristas se coçarem de desespero, é de dar inveja a quaisquer insinuações eróticas ou de violência que você tenha visto em Game of Thrones. Mas não se apavore, o contato entre Igor e Simina é vampiresco e não carnal, ouso dizer que Cláudia, a polêmica personagem de Anne Rice, deve ser um conceito originado não só dos traumas da escritora, mas dessa infernal garotinha romena de Senhorita Christina.
A leitura é um pouco truncada, a consagração de Eliade como intelectual e os assuntos filosóficos e alegóricos abordados ao longo da trama impedem a presença de uma escrita mais suave e rápida, esse romance precisa ser apreciado como uma peça clássica e, como tal, anda devagar. Some a isso o pessimismo endêmico e natureza gótica da cultura romena e você vai obter um livro de leitura ótima, mas exigente, cansativa. Você precisará dedicar um tempo calmo e leve para o livro, mas vai valer muito à pena.
Além disso tudo, o livro ainda suscita um tema recorrente na cultura pop de uns anos para cá, o do protagonismo e poder femininos, o que é no mínimo curioso em se tratando de um livro da década de 30. Em Senhorita Christina, homens fortes e bem educados são literalmente convertidos em ratos em um labirinto.
Se você gosta dessa verdadeira subcultura que existe em volta do mito dos vampiros, se é fã de obras como Drácula e Entrevista com o Vampiro, a leitura de Senhoria Christina é obrigatória, você vai poder acompanhar o desenvolvimento do mito do vampiro segundo um representante da cultura de origem dessa criatura e, de quebra, ainda vai conseguir chegar a algumas mensagens existenciais interessantes como: a morte pode não ser nenhum descanso.
Título: Senhorita Christina
Autor: Mircea Eliade
Editora: Tordesilhas
Nota: 5/5