[Recomendação] Vagabundos Iluminados de Jack Kerouac

Vamos falar de coisas antigas e boas? Revirar alguns Sebos? Vamos!

Jack Kerouac, o americano de origem franco-canadense, maluco e bicho-grilo, não é nenhuma novidade para alguém que tenha vivido neste universo nos últimos 70 anos, é impossível não lembrar de On the Road (Pé na Estrada, na tradução brasileira), obra sacra do movimento Beat no qual Kerouac e outros autores são “enquadrados”.

Dono de um estilo de escrita ágil, como se quisesse relatar o mundo em um único respiro, cheio de detalhes, como uma datilografia maluca a luz de cocaína (o que pode bem ser mais que uma figura de linguagem), mas que a leitura para nós ultramodernos as vezes é um pouco cansativa, por se alongar na descrição de pequenas coisas, nos mostrando não só o objeto e a cena, mas todo o significado capturado pela personagem. Um detalhe interessante é que Kerouac escrevia em várias folhas de papel manteiga fixada umas as outras por fita adesiva, assim não precisava nunca trocar de folha. Desculpe me alongar na figura do Kerouac, mas além de sempre ser importante falar um pouco do autor, Kerouac é seu próprio personagem, e suas histórias a sua estória.

Em Vagabundos Iluminados (Dharma Bums no original) conhecemos Ray Smith, outro alter-ego de Kerouac, uma pequena faceta do d20 – ao menos – que é esse autor, uma face focada na espiritualidade e no estilo que vida que se opõe ao vigente na década de 50, período em que a história é vivida, Ray ao invés de se entregar ao American Way of Life com sua esposa loira, casa de jardim e cerca branca, emprego fixo e dois carros, ao menos um v8, resolve viver a extensão de terra que é a América, sentindo as pessoas e não a narrativa social vigente.

A espiritualidade de Ray Smith é influenciada pelo Budismo Tibetano e Chinês, mas em parte, pois acaba filtrado pela cultura de rua do ocidente estadunidense, adquirindo suas próprias cores e significados, mas ainda assim, cheio de citações e interpretações de sutras antigos, com longas discussões a cerca do vazio, de haikais, meditação, mantras, iluminação e a relação com o universo, com intervalos regados a vinho barato, orgias, festa e montanhismo.

Nesse trajeto pela América, dormindo em praias e qualquer lugar onde possa reclinar a cabeça, pegando carona em trens de carga e comendo comida barata, Ray conhece Japhy Rider (baseado no amigo de Kerouac Gary Snyder), um jovem dedicado a poesia, ao estudo do budismo, ao montanhismo e ao viver. E aqui percebemos mais uma característica de Kerouac, de contrapor personagens, em um relacionamento de ensino-aprendizagem e troca, Jack é além de tudo um grande aprendiz e um ótimo observador, e acaba por passar para o leitor os nuances desses relacionamentos ricos que descreve/inventa/desenvolve. É curioso que como um “Road Novel”, Vagabundos Iluminados também traz várias minucias da vida na estrada, desde a organização da mochila, passando por locais de acampamento, comidas mais simples para andarilhos e outras características próprias a este estilo de vida, e devo acrescentar que mais de uma vez ja fui salvo por essas dicas.

Inclusive, em uma narrativa pessoal, tenho essa “coisa” de visitar lugares pouco tocados ou ao menos que tenham uma menor presença de pessoas, praias, trilhas, cachoeiras e montanhas me atraem na medida em que sejam pouco visitadas, que tenham um determinado vazio humano, chamo de “solitude geográfica” e me encontro no trecho:

Ray Smith – “Por que a gente simplesmente não dorme aqui hoje, acho que nunca vi um parque tão bonito.”
Japhy Rider – “Ah, isto aqui não é nada. É lindo, claro, mas podemos acordar amanhã e deparar com três dúzias de professoras montadas a cavalo fritando bacon no nosso quintal. No lugar para onde vamos, pode apostar o seu traseiro como não vai ter nenhum ser humano, e se tiver, eu sou o traseiro malhado de um cavalo.”

Existe também na obra um sobrevoo por sobre as loucuras que a sociedade nos sujeita, por exemplo na figura de Rosie, uma garota que cruza o caminho de Ray e possui uma “paranoia policial”, sempre acreditando estar a um passo de ser presa, tentando inclusive tirar a própria vida a certa altura, trazendo ao foco as tentativas de nos livrar de certos erros, mas que muitas vezes acaba por sublinha-los e coloca-los em negrito, contrapondo a busca de vazio do budismo, e reforçando a “loucura” do ocidente em se apegar a uma única verdade. Ray se vê nesse redemoinho a todo momento que tenta explicar o Dharma a alguém e percebe que os outros se sobressaem e o menosprezam pela certeza de sua própria verdade:

Ray Smith -“eles é que sabiam o que era certo, eu não sabia nada, era só um rapaz idiota e um tolo inútil que não entendia o significado tão sério deste mundo tão importante e tão real”.

mundo-freak-leituraEnfim, Vagabundos Iluminados é uma obra linda, levemente cansativa para quem esta acostumado com uma leitura mais jovem de descrições simples e objetivas, com uma estrutura de falas rígidas. Mas é rica pelo seu impacto, por ser permeado de uma beleza simples, onde o caminhar e a vida nômade, física, mas sobretudo psíquica, é pontuada pela possibilidade de iluminação em um distanciamento do consumismo exacerbado, da sociedade de aparências e aproximação com a espiritualidade e encontro do eu através da contemplação da natureza.

Duvido que ao lê-lo você não sinta vontade de encher sua mochila de Doritos e andar por ai.

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